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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Comércio de rapaduras - por Glória Pinheiro

Dedico esta postagem ao Mundim do Vale, poeta de cordel varzealegrense e contador de causos. Vale lembrar que Mundim do Vale foi comerciante em seu tempo de menino.

Seguramente, se ainda fosse possível escolher não trocaria minha vida de criança por nada deste mundo. Embora fossem muitos os folguedos na cidade as brincadeiras se intensificavam no Engenho Chico Gomes, comandado por minha querida avó Dedé, desde que enviuvou em 1950. Muitos banhos de levada, cuja fonte de água cristalina jorrava exatamente aos pés da Chapada do Araripe; eventuais pescarias; alguns guisados; passeios na padiola vazia no trajeto da fornalha à bagaceira, em alguns desses passeios observava minha avó sair da casa e sob o batente da porta implorar à Santa Clara que clariasse o dia, a chuva fina de repente sumia, por isso imaginava ser minha avó uma santa. Em outro momento eu lá estava descascando mandioca numa roda de mulheres contandoras de histórias. Gostava de observar todo aquele processo rudimentar da fabricação da velha e boa farinha de mandioca. Outra hora íamos visitar os moradores. Para tudo isso contava com uma boa companhia, Izabel, filha de uns moradores de minha avó. Izabel todos os dias, às sete horas da manhã ia me acordar, esperta como era, sabia que as diversões estavam garantidas. Como não acordar de imediato vendo aquela criaturinha tão terna e delicada, com um rosto que mais parecia uma pequena cigana, tinha a pele queimada do sol e olhos esverdeados. Apesar da humilde condição de vida que levavam ela e a família, composta de pais e dois irmãos mais velhos já na lida; demonstrava ser uma criança feliz. Era uma garota tranquila e boa companhia para as estripulias do dia. Era assim minha querida amiga Izabel, filha de uma família pernambucana. Depois que se foram jamais soube notícias dela, restaram apenas boas lembranças daquela convivência feliz. Das vezes que indaguei sobre ela me falaram que haviam voltado para Pernambuco. Sempre que lembro de Izabel, me vem a mesma pergunta, evidentemente ela não usava burka, mas, qual o destino foi reservado para Izabel? Desejo que esteja bem.

Agora é que começa a história. Como observadora atenta, descobri no engenho umas formas de rapaduras de tamanho reduzido, o produto final correspondia a metade de uma rapaduta de tamanho normal. Foi o primeiro passo para me tornar uma empreendedora. Os trabalhadores do engenho passaram a fazer tantas rapaduras quanto eu pedisse e conseguisse levar para a cidade. Agora só precisava abrir mercado para comercializar. Para minha surpresa não foi complicado, muito pelo contrário. Desde o primeiro dia que me apresentei na bodega do Sr. Joazinho localizada onde o vento faz a curva, ou seja, no Início da Rua Dr. Irineu Pinheiro, próxima de nossa casa. Quando levava o "ouro melado" o Sr. Joãozinho, contava e pagava o que valia. Ao final de cada "negociação" falava contente: "- Quando tiver mais, pode trazer." Acredito que o comprador era justo e leal porque saía da bodega com bastante dinheiro. Até a idade de 14 anos pratiquei esse comércio das vendas das rapaduras, duas vezes ao ano. Para mim significava uma certa independência porque num determinado tempo tinha dinheiro suficiente para custear o cinema da seção das quatro no Cine Moderno, comprar sorvetes e balas.

Naquela época numa segunda-feira, dia em que os trabalhadores rurais se apresentavam para a prestação de contas e receberem o pagamento semanal, presente em nossa casa estava uma senhora já com alguma idade, não precisou muito para eu entender que minha mãe a estava encaminhando para seu tio médico em Fortaleza, para uma cirurgia no seio. Pensei na possibilidade daquela pobre mulher não poder mais retornar para sua família após aquela complicada cirurgia. Não precisei pensar muito fui buscar todo aquele dinheiro da recente venda das rapaduras e entreguei àquela senhora. Até hoje sei que foi um dinheiro muito bem empregado, serviu-me a experiência para não ter o desnecessário apêgo ao dinheiro. Por isso sempre agradeço a Deus pela oportunidade que Ele me deu, e, ainda, ter me tornado uma pessoa mais prática do que teórica.

Texto de Glória Pinheiro

16 comentários:

  1. Maria de Gloria

    Este seu texto relata um fato que já é do meu conhecimento. Segundo seus primos e primas de Crato, que não são poucos, toda vez que voce vem ao Crato voce visitas todas aquelas pessoas que conviveram e trabalharam com os seus ascendentes, nos engenhos, nas farinhadas, nos canaviais. Voce leva o seu afeto, carinho e gratidão pelo que eles significavam para a sua infancia e adolescencia.

    Tenha certeza, essas mesmas lembranças e saudades que voce sente por Izabel ela tambem sente por voce onde quer que esteja. Parabens pelo texto e pela sentimento de humanidade que ele transmite aos leitores.

    A.Morais

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  2. Glória,

    A sua narrativa cheia de sentimento e saudade da sua infância, me tocou muito. Através de suas palavras, você nos mostra que além de ter sido uma criança feliz, assimilou muito bem os valores que recebeu dos seus pais.
    Essa sua generosidade com a mulher que sua mãe estava ajudando, serviu de base para o exercício da solidariedade que tenho certeza você pratica constantemente na vida adulta.
    Parabéns pelo texto.

    Abraços

    Magali

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  3. Glória Pinheiro,

    Vejo que o verde vivo dos canaviais e o gosto adocicado das gamelas serviram de estímulo para o amadurecimento da sua compaixão. Somente as pessoa compadecidas estão preparadas para desfrutar o doce da vida em sua integridade, pois este é o sentimeno mais nobre do ser humano. Parabéns pelo texto e pela lição de vida. Nós lhe somos eternamene gratos.

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  4. Escritora Glória. Eu muito agradeço pela dedicatória, desse excelente conto. Conhecendo as suas postagens, eu seria capaz de dizer que o texto era seu independente da sua assinatura.
    Muito bom parece com as coisas lá de nós. Continúi postando essas maravilhas, para provocar a lembrança nos outros.
    Abraço de gratidão.
    Mundim do vale.

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  5. Para o doutor poeta.

    SÁVIO SALVA A NOSSA GENTE
    E É POETA DO SERTÃO.

    Procurei Sávio Pinheiro
    Encontrei no Cariús,
    Só que ser Osvaldo Cruz
    Esse nosso companheiro.
    Tava com um enfermeiro
    Preparando uma injeção,
    Para curar um irmão
    Que se encontrava doente.
    SÁVIO SALVA A NOSSA GENTE
    E É POETA DO SERTÃO.
    Mundim.

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  6. Morais: Obrigada por suas palavras de conforto, amizade e de incentivo!

    Magali: Vindo de você essas palavras suaves, só me fazem sentir que escuto a doce Magali, do Maurício de Souza. Obrigada, querida amiga!

    Sávio Pinheiro: Aqueles canaviais, a docura e ternura de minhas queridas: avó e mãe, na lida com os compadres delas, não poderei esquecer jamais.
    Bom tê-lo entre nós!
    Obrigada, poeta Sávio Pinheiro!

    Raimundim: o nobre poeta merece outros tantos contos a você dedicados.
    Estender um tapete vermelho só para você passar, se faz necessário!
    Quem me dera ser uma escritora das coisas lá do nosso sertão!

    Um abraço ao Morais, Magali, Sávio e Mundim do Vale.

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  7. Sávio Pinheiro, literata brasileiro!

    Voltei para lhe dizer do quanto admiro sua sapiência, tão peculiar à pessoas sensíveis e iluminadas quanto você!

    Todos do Sanharol nos sentimos honrados de tão nobre presença.

    Um abraço sincero e fraterno!

    Glória Pinheiro

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  8. Glória!!!!!!!, Que excelente texto. Você me fez lembrar de um passado bom, pois meu avô também era dono de engenho e boa parte da infâmia compartilhava e se divertia com meus primos e amigos, montados nos bois que puxavam a manjara do engenho, com vista a esmagar a cana para obtenção dos subprodutos derivado da cana-de-açúcar, como o caldo, rapadura, batida, mel e alfenim. Sem sombra de dúvida, o melhor período da minha vida.
    Assim foi você que além de ter vivido esse período ótimo ainda adquiriu experiências no ramo do comercio com a venda de suas rapadurinhas. Parabéns por esse exemplo de vida e solidariedade com as pessoas mais humildes, fruto de uma educação passada por aqueles que sempre irão servir de exemplos para a população presente e futuras gerações.

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  9. JOÃO BITU!!!!!! (risos)

    E no engenho do seu avô tinha alambique? Você pode acompanhar todo o processo da fabricação da cachaça? Tinha uma pipa bemmm grande para armazenar a água ardente"? Era assim que minha avó fala: "água-ardente"!

    Quando você foi crescendo abria os baús de seus avós? Vestia as roupas e chapéus do "tempo antigo"?

    Você enviava recado para o pessoal do zabumba vir tocar no terreiro do engenho e você dançar com as primas?
    Você tomou o devido cuidado para agradecer com rapaduras e uma garrafinha de cachaça aos tocadores de zabumba que já chegavam tocando e voltavam para suas casas tocando felizes e agradecidos pelo reconhecimento?

    Enfim, foram tantos momentos bons, saudáveis e felizes, não?

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  10. Errata:
    ao invés de falava escrevi fala.

    Ainda, minha santa avó falava "água-ardente" ou, aguardente, mesmo!
    João Bitu, sabe aquela água que passarinho não bebe? Nem tampouco eu! rsrsrs

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  11. Glória, que belo texto!! Não a conheço mas por sua história acredito que você é uma pessoa feliz e tem muito carinho por seu povo. Já ganhou minha admiração.... Como diz o poeta: Se todos fossem no mundo iguais a você... Continue com esse seu afeto, generosidade e amor ao próximo... Pessoas como você fazem a diferença.
    Um grande beijo em seu coração e Deus te abençõe.

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  12. O engenho do meu avô só fazia rapadura. A tecnologia do processo de destilação para a fabricação da cachaça somente no Crato, pois o nível de conhecimento e domício já eram bem mais avançados.
    Com relação ao toque da banda Cabasal ou zabumba, também não existia no pátio dos engenhos, isso falo com relação ao Sítio Panelas onde morava meu avô. O Cratinho de açúcar sempre foi bem desenvolvido nessa parte da cultura popular.
    No período que estudei no Crato, anos 1975 a 1977, tomei muita cachaça nos engenhos, irmos pegar esterco de gado para as hortas da Escola e tomava naquela catembinha de coco, tornava-se bem mais saborosa.
    Portanto, em função dos solos do Cariri serem bem mais férteis, vê que você teve uma infância e adolescência de invejar os moradores das cidades circunvizinhas em função da fartura de frutas e outros subprodutos derivados do babaçu, mandioca, buriti e do delicioso piqui da Chapada do Araripe.

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  13. Glória:
    Seu texto foi escrito com sentimento.
    Por isso ficou tão bom.
    O sentimento vem de dentro pra fora, do coração para a mente, transformando lembranças guardadas no escrínio da alma em escritos agradáveis, quase poéticos...
    Continue a nos brindar com lembranças das imagens, momentos e sentimentos que você tão bem guardou.

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  14. Klebia: Ah! Se eu fosse poeta!
    Encontraria as palavras certas para lhe dizer que o exercício de voltar à vida de criança é para aquietar o velho coração adulto.
    Obrigada pelo seu carinho.
    Um grande abraço

    João Bitu: Cada cidade com a sua peculiaridade. Crato com seus canaviais e Várzea Alegre com seus arrozais. Só não entendo porque Crato tinha o privilégio dos derivados da cana-de-açúcar, em especial na fabricação da cachaça e a alegria contagiante ficou para Várzea Alegre. Um abraço corinthiano. (risos)

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  15. Glória, não precisa ser poeta para transmitir esse sentimento. Mesmo sem esse dom, você consegue deixar sua alma falar e fluir as palavras que nos reportam ao passado, à nossa infância....E isso no faz mais felizes, Glória, quando não deixamos morrer essa criança que existe dentro nós... Nos faz aquietar o coração adulto... As saudades do nosso "velho tempo" são muitas... E são só saudades... Mas é assim... Temos boas lembranças...
    Beijos e fica com Deus.

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  16. Armando:

    Já lhe falei do orgulho que sinto de ser sua conterrânea? De prezar e estimar a amizade e coleguismos dos nossos pais?

    Lendo suas palavras lembrei-me: Certa vez, num momento dolorido precisei falar para uma pessoa querida, disse-lhe com muita convicção: "A essência do homem não acaba". Por isso, quando escrevinho algo, sem nenhuma pretensão, remexendo num baú tão remoto da minha alma, procuro incasavelmente minha essência para que ela não suma nesse emaranhado de descontentamento.

    Grande Armando!
    Grande Historiador!

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