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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

SEXTA DE TEXTOS – Sávio Pinheiro


DEBULHA DE VERSOS
Dedico a Francisco Gomes da Silva (Nem)

O folheto ou romance, hoje cordel, significava para o homem simples do nordeste o jornal impresso, a revista, o noticiário, a novela e toda a fonte de informação necessária para o seu entretenimento. De origem ibérica – o escritor português Gil Vicente já publicava as suas peças teatrais em livrinhos pendurados em barbantes, daí a origem do termo cordel - esta prática entrou no Brasil através de narrativas orais até ser utilizado de forma impressa pelo grande editor e poeta paraibano, radicado no Recife, Leandro Gomes de Barros.

As proezas de Lampião, os milagres de padre Cícero, a trajetória de Antônio Conselheiro, a morte de Getúlio Vargas, as histórias de Príncipes e Princesas e os relatos de amor com final feliz complementavam o imaginário de vaqueiros, comboieiros, agricultores e tantos outros, de forma agradável e acessível.

Coco Verde e Melancia (o Romeu e Julieta do cordel) e o Romance do Pavão Misterioso (folheto que trouxe inspiração para a música e a novela) de José Camelo de Melo Resende; Os Doze Pares de França de Sebastião Nunes Batista; A Chegada de Lampião no Inferno de Zé Pacheco da Rocha (um dos folhetos mais editados do país); História do Soldado Vingador, O Dinheiro ou Testamento do Cachorro e o Cavalo que Defecava Dinheiro de Leandro Gomes de Barros; Proezas de João Grilo de João Ferreira de Lima e tantos outros clássicos era motivo de alegria e orgulho para os leitores, cantadores e declamadores. Os três últimos serviram de base para a peça O Auto da Compadecida, do genial Ariano Suassuna.

O aposentado Nem, do sítio Juazeirinho em Várzea Alegre no sertão nordestino, ex-comboieiro, ex-pedreiro e famoso declamador de versos, narrou-me, que era comum nas comunidades rurais, a prática da debulha de feijão: forma socialista de o pequeno agricultor beneficiar e armazenar a sua safra de grãos, sem a necessidade de utilizar os seus parcos recursos. Tudo era feito de forma comunitária, tornando as noites mais produtivas e animadas, pela formidável integração do grupo e pelas conversas prazerosas existentes.

Certa noite, após uma longa maratona dessa tradicional prática agrícola, pensou: - Já estou com os dedos calejados de tanta debulha e, pelo jeito, estou no prejuízo, pois o que trabalhei nessas noitadas todas dava de sobra para eu armazenar o dobro do que produzi este ano trabalhando sozinho. - A partir daí, aconteceu a sua grande reflexão e posterior descoberta.

Um velho amigo, ouvindo as suas lamentações, disse-lhe: - Olha Nem, você nunca percebeu, mas as pessoas lhe convidam para as debulhas de feijão não é devido ao seu trabalho, não! É por conta da sua prodigiosa memória e do seu grande talento para declamar versos. Você é quem faz a festa e quem incentiva a força produtiva dessa gente. Você sempre foi a grande atração da noite.
Sem pestanejar e de maneira segura, retrucou o amante dos cantadores de violas e dos folhetos de cordéis e, até então, o acomodado artista: - Ora veja! E eu com os dedos descascados de tanto debulhar feijão, podendo estar, apenas, debulhando versos.

# Francisco Gomes da Silva, o Nem, 88 anos, sabe de cor a maioria dos clássicos da literatura de cordel, alguns com mais de cem estrofes, que os declama, solenemente, para a dedicada esposa Antônia, que não se cansa em ouvi-lo.

7 comentários:

  1. Parabens Dr. Savio pelo relato historia sobre o cordel. Parabens pela historia do seu Nem. Eu participei de varias debulhas de feijão e conheço duas historinhas engraçadas dos meus avós e vou aproveitar para conta-las depois. Parabens seu Nem que Deus lhe dê muito tempo para o Senhor transmitir as pessoas a sua prodigiosa sapiencia.
    Feliz Natal a todos.

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  2. Caro Morais...
    Belíssima história que revela com sensibilidade momentos solidários e a capacidade de nosso povo sertanejo, nas debulhas de feijão.
    E contada pelo querido Dr. Sávio, um lavrador e debulhador de verso e prosa, tornou-se ainda mais interressante..
    Grande abraço...

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  3. Sávio,o Nem com 88 anos decora tudo,eu não consigo decorar nem o poeminha do contra do Mario Quintana.
    Todos estes que aí estão
    Atravancando o meu caminho
    Eles passarão...
    Eu passarinho.

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  4. Amigo Morais,

    Fico imaginando quantas histórias interessantes você deve ter, extraídas das tradicionais debulhas de feijão. O calor humano daquelas noitadas era impressionante. A coceira também.

    Um abraço.

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  5. Magnólia,

    Segundo relato do próprio declamador de versos, as debulhas de feijão possuíam grande alegria, fato que ele recorda com prazer. Aproveitando a oportunidade, abrace o Aldenízio e diga-lhe que sinto saudades das suas declamações nos bares da vida.

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  6. Caro Flávio,

    Sempre fostes muito generoso com os meus escritos. Saiba que, além de possuíres um grande talento, tu és o nosso mais representativo precursor na arte de narrar, daí a minha grande admiração pelos seus feitos.

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  7. Luiz Lisboa,

    Você é igual a mim. Não sei nada decorado. Acho que a minha mente só aceita nome de remédio. Será se existe medicação para isso?

    Um grande abraço.

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