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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Cortando o cordão – Por Carlos Eduardo Esmeraldo

O acaso sempre esteve presente na minha vida. Sem que eu planejasse muita coisa, como muitos o fazem, deixei que a vida me levasse e, ela me conduziu por caminhos retilíneos e belos. Em janeiro de 1964, eu pensava que iria continuar estudando no Crato, na minha zona de conforto, sob a proteção dos meus pais, entre meus familiares e colegas de estudos, uma turma unida e muito amiga. Dizem que o destino sabe traçar a estrada daqueles que sem querer, a ele se entregam. Talvez tenha sido esse o meu caso.

Um primo que estudava engenharia no Recife, estava de férias e visitava nossa casa, no São José. Ao vê-lo, fui conversar com ele, saber como era o curso de engenharia, suas dificuldades e sobre o vestibular. Sabedor de que eu desejava cursar engenharia, ele me aconselhou a ir estudar no Recife durante o curso científico. Disse-me que se eu ficasse no Crato, correria o risco de não ser aprovado no vestibular. Respondi que não dependia de mim. E então ele foi falar com o meu pai. E o fez de uma forma tão convincente, que eu senti naquele contato a concordância do meu pai. Mas este não disse nem sim e nem não. Para mim dizia ser impossível, pois não estava podendo arcar com as despesas.

Dias depois, um parente do meu pai, diretor da Escola de Engenharia de Minas de Ouro Preto, visitava meus pais, sempre que vinha ao Crato em suas férias. Ao saber do meu desejo de cursar engenharia, aconselhou-me que eu fosse estudar em Ouro Preto, colocando sua casa à minha disposição. Fiquei receoso de meu pai aceitar aquele convite protocolar, pois além de não ter nenhuma intimidade com aquele parente distante, Ouro Preto, para mim, era um fim de mundo.

No inicio do mês de fevereiro daquele ano, nada estava definido. Pensava tranquilamente que iria continuar no velho Colégio Diocesano e isso me dava certo alento, pois por ser o filho caçula, eu era muito apegado aos meus pais e irmãos. Entretanto, dias depois, o meu pai recebeu uma carta de uma irmã dele, a tia Anete, que residia em Salvador, dizendo que já reservara a minha matrícula e que eu poderia ir estudar na Bahia. Olhei no sobrescrito o meu futuro endereço: Avenida Beira Mar 404. Na minha imaginação surgiu, como que de repente, a avenida de mesmo nome que eu vira em Fortaleza na única visita que fizera até então a uma cidade maior que o Crato, além do Juazeiro, é claro! E imaginava que iria viver num paraíso. Fiquei ainda mais contente, quando soube que o meu primo e companheiro de brincadeiras, José Esmeraldo Gonçalves também iria.

Tudo então ficou decidido e às pressas, mamãe preparou um enxoval que fez minhas lembranças recuarem cinco anos, quando fui estudar no Seminário. Um medo disfarçado se apoderou de mim. Era a primeira vez que iria sair do Crato e debaixo das asas e da proteção dos meus entes queridos.

Um novo mundo se descortinava à minha frente, o desconhecido, a sensação de uma nova vida. Viajar de avião, coisa impensada, conhecer a cidade de Salvador e suas inúmeras igrejas e tantas outras belezas das quais ouvia falar com insistência.

Viajei com meus primos que lá já estudavam e residiam com minha tia Anete. Por causa de um defeito no DC3 que nos levaria, esperamos um dia inteiro no velho Aeroporto de Fátima, sem nada para enganar o estômago e sem comunicação. Somente no dia seguinte é que conseguimos voar num DC6 que veio em substituição ao avião danificado. O DC6 era um avião grande, com assentos com três cadeiras de cada lado e capacidade para mais de cem passageiros. Ao chegarmos a Salvador, uma Kombi da Varig levou os passageiros de porta em porta até a residência de cada um. O aeroporto distava mais de trinta quilômetros da cidade. Fomos os últimos a chegar ao destino, pois onde tia Anete morava era na Ribeira, final de uma península na cidade baixa.

Senti um misto de arrependimento e tristeza. A Avenida Beira Mar não era nada daquilo que eu imaginara. Era uma rua larga, às margens da Baia de Todos os Santos, sem calçamento, cheia de poças d’água, muita lama e enormes amendoeiras no meio, cujas folhas caídas se misturavam e recobriam as poças de lama. O bairro era triste, composto por um monte de casas velhas. Onde íamos morar era numa escola, o Educandário Pio XII, alojado num velho casarão de três andares, com piso de tábua corrida, que ecoava sob nossos passos. No terceiro andar havia um pequeno apartamento composto de três quartos, um banheiro, um vestíbulo com guarda-roupa coletivo e uma ante-sala ao lado da escada, onde estudávamos. Ao todo éramos seis pessoas que morávamos neste pequeno apartamento, eu, e os primos João Barreto, José Esmeraldo, Luciano Gonçalves, além do cratense Dailton, professor do Pio XII e dois jovens de Alagoinhas: Wedner e Ananias. Daílton era o mais velho do grupo. Ele tinha na época 26 anos, e por causa disso recebeu o apelido de “O Velho”.

A tia Anete ao nos receber, entregou a mim a Zé Esmeraldo uma chave da porta de entrada e nos disse: “vocês saem e entram na hora que quiserem e não precisam me avisar nada.” Senti um enorme peso, pois lá em casa, eu vivia sob certo controle e acompanhamento. Mas aos poucos aprendi a usar minha independência e isto me foi de grande importância para meu amadurecimento pessoal.

Ainda hoje, eu sou grato a essa minha querida tia por ter tornado possível a realização de um sonho. Se não fosse sua solicitude não teria oportunidade de estudar num grande centro. Por isso eu tenho por ela um enorme carinho e gratidão. Ela é a única das minhas tias ainda viva. Reside no Crato, com bastante lucidez e invejável memória, aos oitenta e nove anos. Em julho próximo, esperamos festejar seus 90 anos.

Por Carlos Eduardo Esmeraldo

9 comentários:

  1. Carlos Eduardo.

    Parabens pela postagem. Essa nossa etapa de estudante é realmente prestimosa, as pessoas com quem convivemos na sala de aula, os professores são inesqueciveis, são para nós como uma segunda familia.

    Abraços.

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  2. Carlos, estava lendo aqui sua experiência de cortar o cordão. Muito bonita e muito bem narrada. Somos caririenses saudosistas e você parece ter o mesmo sentimento que eu: o apego à família, ao Crato. O meu deslocamento de Várzea Alegre foi bem mais sutil. Saí para conhecer Fortaleza em férias. Aqui fui a um médico que decidiu me operar, já que eu praticamente não caminhava. Resumindo: passei um ano entre hospitais e clínicas de fisioterapia, usando aparelho ortopédico. A vontade de caminhar foi mais forte que a saudade que sentia de meus pais e de V Alegre. Passei um ano sem estudar até ter condições de me deslocar ao colégio sozinha, daí fiz o famoso vestibular, faculdade e logo depois comecei a trabalhar e só voltei a minha cidade nas férias.Dedico esse meu pequeno comentário a uma irmã chamada Isabel Bitu que me deu força para cortar o cordão e me acompanhou brilhantemente. Obrigada, Carlos, por ter me inspirado a escrever essa pequena homenagem. Abraço de uma saudosista,
    Fafá Bitu

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  3. Obrigado ao Morais e a Fafá Bitu por haverem lido e gostado do texto. Isto nos motiva muito.
    Prezada Fafá
    Seu comentário é muito rico em emoção, um exemplo de superação. Sugiro transformá-lo numa crônica para postagem a fim de que muito mais pessoas se mirem no seu exemplo e possam ter coragem de enfrentar os desafios que a vida nos reserva.
    Muito obrigado por suas palavras e que Deus lhe abençoe.

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  4. Carlos, muita gentileza de sua parte mas essa minha história já é tão conhecida no blog, não sei se vale a pena rememorar. Peça sugestão a Morais, eu não tenho muita habilidade com o novo layout do blog. Ultimamente só estou comentando em função disso.Apareça mais vezes, o blog precisa de bons textos como o seu. As pessoas gostam de qualidade. Adorei seu texto. Parabéns!
    Fafá Bitu

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  5. Fafá.

    O Blog não mudou em nada. A sua postagem pode ser feita da maneira que voce fazia. As orientações do Dihelson apenas facilitam e aumentam a quantidades de postagens na primeira pagina. Quando voce se habituar com a nova sistematica voce passa a fazer na nova modalidade.

    Abraços.

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  6. Blog do Sanharol, por enquanto vou comentando apenas, quando eu me acostumar com as novas mudanças, posso pensar em postar. Ah! Vá lá na postagem de Mundim sobre Zé Filipe...coloquei mais uma, assim que tiver um número considerável de dados, a gente fecha a matéria.
    Abraço Fafá Bitu

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  7. Carlos Eduardo,

    A primeira experiência, longe das amarras e do cabresto doméstico, é mais importante que uma educação no rigor da moral e da ética. A liberdade te ensima mais que a prisão domiciliar. Assim aconteceu comigo.

    Um abraço.

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  8. Prezado Sávio

    Obrigado por haver complementado o texto. Na realidade, se eu não tivesse tido essa experiência, jamais teria crescido e amadurecido na vida.
    Um grande abraço!ua

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  9. Bom Dia, Carlos, lá na minha Várzea Alegre acontece coisa parecida e eu protesto sempre. Nasci na rua Major Joaquim Alves e e um belo dia me deparo com a troca de nome. Não tenho nada contra o novo nome, a pessoa ilustre que foi mas eu acho um desrespeito à história da cidade. Ninguém na cidade protestou, eu fiquei aqui no blog falando, reclamando mesmo, chego a ser antipatizada pelos que promoveram tal mudança e pelos que ficaram calados por puro medo, na verdade, todo mundo sabe que está eraado mas ninguém diz nada. AH ! Convido vc a participar de um debate sobre discriminação racial que foi sugerido por Sávio mas a postagem inicial é de Mundim. Leia meus depoimentos de como já fui discriminada e como me defendi. Abraço Fafá

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