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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Saudade: das cinzas, carnaval

Por Beatriz Jucá Pinheiro

A vida por viver não tem espaço no Roçado de Dentro. Lá, rebobinam as cenas, voltam no tempo. Sustentam o presente no pretérito, mas esquivam-se de quaisquer planos para o futuro. Quem mora no Roçado de Dentro tem cabeça boa de não pensar na vida. De não se preocupar com o dia que ainda está por vir.

O Roçado de Dentro está impregnado das histórias de hoje, mas há uma mistura dos tempos porque como se pode entender o que acontece hoje sem saber do que já passou? As coisas no Roçado acontecem em carne viva. Tudo é muito visceral porque as pessoas estão impregnadas por um tipo de dor que não vem cheia de pena. A dor que aparece nas histórias é só mais uma dor dentre tantas outras. O sofrimento faz parte da vida e não é supervalorizado por causa disso. Faz parte como muitas outras coisas.

O Roçado é cheio de gente. Tem Tita interrompendo a fala pra falar do tempo. Tem Cícero com nojo de tirar leite de vaca. Tem Chiquinho que não sabe tocar, mas tira som de mais de dez instrumentos. Tem Socorro que grudou os olhos no chão porque pegou a depressão da família. Tem Bichinha que chora quando fala de comida porque tem os olhos de seca. Tem Tonha que descobriu que era andarilha quando me contou que foi a única da família que conseguiu ver os “fogos de Copacabana” em Santos. Tem Antonito que perdeu o juízo no tempo, mas não deixou de recitar versinhos. Tem Lázaro cantando as marchinhas de carnaval da década de 60. Tem Matias tocando sanfona. Tem Antônio de Souza desfilando com dor no ombro até ter um filho que queira ocupar o seu lugar na Esurd. Tem pai de família levando criança em moto e revoltando Chiquinho. Tem Nonato querendo realizar o sonho do pai e insistindo na história do samba-enredo acompanhar o desfile da Esurd. Tem Lúcia vendo a vida do terreiro. Tem Fransquinha acompanhando o mundo pela janela de casa. Tem homem trabalhando na roça e fazendo samba. Tem pai de família com sete anos de idade. O Roçado de Dentro tem história.

A música é o que diferencia os agricultores de lá de todos os outros da região. O instrumento é o que faz sentido, o que entrecruza as gerações. Agora o que dá sentido à Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro é a saudade. E também a necessidade de mostrar para os que já se foram que os agricultores do Roçado de Dentro conseguiram seu lugar no mundo. Porque ninguém esperava que matuto fizesse carnaval, mas eles ousaram. Desfilaram animados. Percorreram longos trajetos incentivados pela saudade do pai, do avô, do tio, do mestre, do herói. Agora podem bater no peito e dizer que têm uma casa, um chão pra plantar o alimento, uma família e uma escola de samba. Venceram a fome, a seca, o preconceito. E, como não conseguem vencer a dor da ausência, transformam a saudade em samba. A beleza está nas sobras do carnaval. A vontade está nos restos dos abraços.

6 comentários:

  1. Ontem, falei por telefone com a minha filha Beatriz e ela ficou muito emocionada pelo falecimento do Matias Bezerra Sousa, o nosso querido mestre e um dos fundadores da ESURD.

    Um abraço nos familiares, amigos e admiradores do Matias Sousa e na grande família Roçado de Dentro.

    A ele, dedicamos esse texto.

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  2. Beatriz, belo texto voce estreando como uma ótima jornalista. Só a saudade dos que se foram empurra a ESURD pra a avenida.Um abraco

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  3. Beatriz, tenho inveja de três coisa nessa vida: quem sabe escrever, quem sabe falar e quem sabe dançar. Babo de muita admiração por essas pessoas; viajo nas palavras e me encanto com os passes de samba, forró, axé e outros...
    Linda a crônica!!! Parabéns por tanto talento...
    Filho de peixe é peixinho....
    Beijos...

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  4. Beatriz.

    Sua caneta desfilou bem na historia da saudade das cinzas do carnaval. O Roçado de Dentro é tudo isto e muito mais. O nosso carnaval deve muito a criatividade destes herois do Roçado Dentro. Voce falou muito bem de pessoas, muitas inclusive, e eu gostaria de lembrar Antonio de Zé de Ana, uma das grandes inteligencias de nossa terra. Sua criatividade enfeitou os blocos nos primordios da historia.

    parabens.

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  5. Parabéns Bia. Gostei garota, vá em frente.Você vai longe.
    Fideralina.

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