Páginas


"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quarta-feira, 4 de maio de 2011

AVÓ PRÓDIGA - Um Conto de Xico Bizerra.

Atarogildo não dera pra nada na vida. De tudo tentara: entregador de remédios da Farmácia 9 de Julho a picolezeiro da Sorveteria Jundiaí. Quis ser sapateiro, sem sucesso, e até como cortador de cana tentou se empregar. Por fim, resolveu estudar música, profissão que, no seu entendimento, mais se assemelhava a seu jeito de ser e que lhe permitiria, sonho sagrado, continuar vagabundeando, mas fantasiado de trabalhador. Nessa empreitada, engasgou-se com um sustenido, vomitou um mi bemol e até hoje procura uma partitura para nela depositar seus sonhos de músico. Tudo insucesso, tudo em vão.
- Bem feito pra você, Gildinho. Eu sempre lhe disse para estudar mas você nunca quis escutar sua velha mãe – dizia-lhe, diariamente, Berta Lavadeira.
Dona Berta, embora sem culpa no cartório, vez por outro se flagrava assumindo a culpa pelo fracasso de sua cria. De uma coisa, ela não podia reclamar: o seu Gildinho, tão incompetente pro trabalho, mostrava-se um ás quando o assunto era fazer menino. Só em Jeriguá da Barra Funda já lhe presenteara com sete netinhos, de cinco mulheres diferentes. Isso tudo sem contar a fabricação independente nas redondezas, de que se perdera a conta.
Não se sabe se por isso, mas Atarogildo era feliz, vivia a arrotar alegrias pelos quatro cantos da boca e pelos arredores da alma. De vez em quando assumia sua total inutilidade:
- Minha vidinha ‘tá tão boa, mas tenho que tomar um jeito e arranjar qualquer coisa pra fazer, pra acabar de vez com essa minha vadiagem. Já ‘tô morto de cansado de tanto não ter o que fazer – cochichava de si para si.
Foi aí que surgiu a idéia genial: candidatar-se a uma vaga de Vereador. Dinheiro fácil, pouco trabalho. Não em Jeriguá da Barra Funda, onde todos lhe conheciam e sabiam de seu pouco apego ao trabalho. Certamente teria apenas dois votos naquela cidadezinha, o seu e o de Dona Berta, insuficientes para elegê-lo. Foi ao mundo e filiou-se imediatamente ao Partido do Coronel Feliciano Torreão, na cidade vizinha de Taguará da Serra e partiu em campanha, não sem antes transferir o título eleitoral de sua mãe para aquele novo reduto, prestes a se transformar em metrópole, fosse o nosso Gildinho eleito, como esperava.
E tome promessa:
- O povo daqui agora vai ver o que é um político sério. Pense num Vereadorzinho trabalhador, que só pensa em trabalhar em prol do povo de Taguará da Serra. Estou aqui para trabalhar – alardeava em comícios
Na campanha, cansou de carregar menino cagado no colo, ficou rouco de tanta promessa mentirosa, acabou solas e solados de alpercatas num corpo-a-corpo danado. Dentaduras e tijolos ficaram apenas na promessa, que ele não tinha dinheiro pra isso. Mas prometeu. Pena que se a mentira tem pernas curtas, a verdade mais curtas ainda as tem: o povo de Taguará conhecia a fama do pretenso Edil e ao final da apuração restara-lhe um mísero voto: o seu. De nada valera as vãs promessas de campanha. Que aquele povo não era besta ele já sabia, mas julgava que fosse um pouco mais do que realmente era.
Sua mãe, ao ser reclamada por não ter-lhe dado o voto, fechou os olhos e com a doçura que só as mães tem, com a ternura própria dos que amam, disse-lhe baixinho, para que ninguém, além dele, escutasse:
- Meu filhinho querido, preste atenção: se o povo, que não te conhece direito, não votou em tu, imagina eu que te conheço desde pequeninho e sei de tuas safadezas desde que tu nasceu. Fique com raiva deu não, mas eu votei foi em Seu Biu da Farmácia.
Gildinho apanhou os cacos de uma cédula eleitoral, nela riscou um ‘X’ ao lado do nome do Coronel Feliciano Torreão e desapareceu de Taguará da Serra. Além de seu único voto, depois se soube, restaram mais dois netinhos para Dona Berta.
Berta lavadeira, avó pródiga, depositou sua última lágrima numa seção eleitoral da Cidade, enxugou-a com o santinho de Atarogildo e nunca mais quis ouvir falar de eleições: fora-lhe cassado o mandato da alegria.

Um comentário:

  1. Prezado Xico Bizerra.

    Um belo conto. Rigorosamente fiel a historia da avó prodiga, dos netos queridos e da politica como um todo. Muito bom, prazeroso de lê, uma gradavel leitura.
    Parabens.

    ResponderExcluir