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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quinta-feira, 23 de junho de 2011

A DIVINA COMÉDIA - Canto VIII - O Inferno - Por Vicente Almeida

Canto VIII

Flégias - Demônios - A cidade de Dite

Dante e Virgílio Atravessando o Rio Estige.
O Clarão ao fundo é a cidade de Dite.
Pintura de Eugene Delacroix Seculo XVIII

Eu devo explicar que, bem antes de chegarmos ao pé daquela torre, já observávamos as duas chamas que havia no seu cume. Na escuridão do rio, outra luz tão distante que quase não se via, respondia com um sinal. Voltei-me ao mar de toda sabedoria, e perguntei:
- Que sinais são estes? E aquela outra chama, o que ela responde? Quem é que as provoca?
- Sobre esta lama imunda em breve poderás perceber o que se espera - respondeu Virgílio.

O barqueiro Flégias deixando Dante e Virgílio na entrada da cidade de Dite
Gravura de Gustage Doré

Mal ele terminara de falar, da escuridão surgiu um barquinho pilotado por um barqueiro solitário, cortando a água em nossa direção.
- Chegaste, alma culposa! - gritou ele ao ancorar.
- Flégias, Flégias, desta vez tu gritas em vão - respondeu o meu senhor, - pois só vais nos levar à outra margem e nada mais. Contendo a sua ira, o barqueiro concordou. Meu guia calmamente embarcou e depois eu entrei, e só então o barco pareceu carregado.
No meio do caminho, um ser lamacento surgiu das águas e me chamou, perguntando:
- Quem és tu que vens antes do tempo?
- Venho - respondi, - mas não demoro, mas quem és tu tão revoltoso?
- Eu sou um dos que chora, como podes ver.
- Com choro e com luto, espírito maldito, que assim permaneças, pois eu te conheço, mesmo tão sujo!
Depois que eu lhe respondi, ele irritou-se e saltou sobre o barco, tentando me agarrar. Virgílio, porém, foi mais rápido e conseguiu lançá-lo de volta ao rio.
- No mundo este homem foi pessoa orgulhosa - disse o mestre - e nada de bom resta em sua memória. Por isto é que sua alma está aqui tão furiosa. Vês, quantos lá em cima se julgam grandes reis e aqui estarão como porcos na lama?
- Mestre - falei, - muito me agradaria também vê-lo aqui afundado na lama antes que saíssemos deste lago.
- Antes que apareça a outra costa - respondeu o mestre - teu desejo será satisfeito.
Pouco depois, ouvi seus companheiros o massacrarem. Eles gritavam: "Vamos pegar Filippo Argenti!".
Deleitei-me ao ver aquele florentino arrogante morder a si mesmo com os dentes de raiva.
E lá o deixei, e disso não falo mais. Comecei, então, a ouvir vozes dolorosas, que me impeliram a olhar adiante.
- E agora meu filho - chamou-me o mestre - nos aproximamos da cidade que se chama Dite, com seus tristes cidadãos e grande companhia.
- Mestre, - observei - já posso ver as suas mesquitas logo acima do vale infernal! Elas brilham, vermelhas como ferro em brasa.
- É o fogo eterno que arde no seu interior que faz esse brilho rubro se espalhar pelo baixo inferno. - completou Virgílio.
Entramos no fosso que cerca a cidade e Flégias deu uma grande volta em torno dela, onde pude observar seus muros que pareciam ser de ferro. Quando chegamos diante da entrada da cidade, Flégias gritou alto com toda a força:
- Saiam! Saiam logo! É aqui a entrada.
Demônios barrando a entrada de Dante e Virgílio na cidade de Dite
Gravura de Gustave Doré


Descendo do barco, fomos recepcionados por um grupo de demônios. Eles chegaram e perguntaram:
- Quem é esse que, sem morte, anda pelo reino da morta gente?
O sábio mestre veio em meu auxílio. Dirigindo-se aos demônios, fez sinais indicando que gostaria de falar com eles secretamente. Responderam os diabos, disfarçando sua arrogância:
- Tudo bem, mas vem tu sozinho. E esse outro aí, que achava que podia andar como rei nesta terra, que prove que pode voltar sozinho se souber, pois tu que o guiaste até aqui vais ficar conosco!
Apavorei-me diante dessas palavras e temi não mais poder voltar a ver o mundo outra vez.
- Caro meu guia - chorei, em desespero -, que tantas vezes me deste segurança, não me deixes, por favor! Se não pudermos prosseguir nesta jornada, que voltemos já sem demora!
Mas ele, confiante, me respondeu:
- Não temas, porque o nosso passo, ninguém pode impedir. Mas espera aqui e descansa. Não deixes de ter esperança, pois podes ter certeza que não te deixarei sozinho neste mundo baixo.
Ele falou e foi encontrar-se com os diabos, e eu fiquei só a observar de longe. Não ouvi a conversa. Só vi a briga de longe e a porta da cidade se fechar diante de Virgílio, que voltou para mim cabisbaixo, em um passo lento.
- Olha só quem me nega a cidade da dor! - disse, triste - Mas não temas, pois ainda vencerei esta prova. A esta hora já deve estar no portal deste inferno alguém por quem esta entrada será aberta.

No Canto IX, veremos o Círculo 6 - da heresia

23/06/2011

5 comentários:

  1. É...

    Este Canto não traz novidades relativo a punições. Trata basicamente da travassia do Rio Estige, pantanoso e lamacento que abriga as almas dos iracundos.

    Apresenta apenas dois novos personagens: Flégias, o barqueiro, rei mitológico dos Lapitas. O deus Apolo violou sua filha e como vingança, ele incendiou o templo de Apolo.

    Filippo Argenti é conhecido apenas das obras de Dante e do Decamerão, de Boccaccio. Teria sido um guelfo muito rico, forte e orgulhoso, mas de pavio curto. A menor provocação era respondida de forma explosiva, irada e vingativa.

    A cidade de Dite é a cidade dolente, habitada pelos hereges que duvidavam da sua existência.

    Serve de divisão entre os pecados cometidos sem intenção (culpa) e os pecados cometidos conscientemente (dolo).


    Vicente Almeida

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  2. Vicente, continuo a seguir-te!
    Relendo e rindo com esta comédia maravilhosa e atual!

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  3. Concordo com a Atemisia: é deveras atual essa comedia. Continuo te acompanhando, com curiosidade e prazer. Abraço fraterno. Fatima.

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  4. É...

    Artemisia e Fátima:

    Como uma secundou o comentário da outro, respondo-lhes nos mesmos parágrafos.

    De fato o poema, apesar de seus 700 anos, revela ocorrências da atualidade. Os males não mudaram, mudaram as formulas de praticar o mal.

    Vejo muita gente se desviando do caminho da luz e nada posso fazer, a não ser alertá-las do erro balístico de sua trajetória aqui na terra nesse momento.

    Contudo não posso nem devo ser direto, não posso si quer pegar um atalho, mas, posso mostrar simbolicamente as consequências de muitos atos que as pessoas julgam irrelevantes.

    "A Divina Comédia" mostra simbolicamente até onde pode descer ou subir a alma humana. Digo, contudo que a realidade é bem pior, exceto por um fator: Não reconheço e nunca aceitei como verdadeiras, as penas eternas.

    Vicente Almeida

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  5. Uma coisa é certa: um Deus de amor não criaria lugares tão pavorosos para castigar almas humanas, até por que o conceito de alma imortal não passa de uma invenção de filósofos gregos, que foi adotada pela Igreja (já que o conceito de alma imortal não consta em parte alguma da bíblia)."O salário pago pelo pecado é a MORTE", não o sofrimento eterno, como bem dizem as escrituras.

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