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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quinta-feira, 14 de julho de 2011

Coisas nossas, por Zé Nilton

Na feira.

Para o várzeo-cratense Antonio Alves de Morais

Coisas bem nossas guardar a segunda feira como o prolongamento de domingo; nada de trabalho. Calma, isto ocorre não raro fora da cidade, subindo para os pés de serra, sítios e Chapada. Os lugares de feições rurais que permanecem com seus ritmos, ritos e costumes.

Procure-se uma mão de obra qualquer na segunda feira e não acharás.

Cadê Nego d´Água pra sentar a cerâmica ?

- Foi pra feira.

- Chama aí Carriel, Mansinho ou Lóba pra começar o levantamento do Muro...

- Tão tudo na feira.

- O que vocês foram fazer na feira?

- Bem, eu fui comprar uma roçadeira, uma lima pra amolar meu serrote, e um cinturão de couro, o meu se quebrou.

- E tu ?

- Comprar duas calças de brim e um chinelo currulepo.

- E tu aí?

- Fui olhar o ambiente, e ver se achava alguém da Serra pra mandar um recado pro Toin, lá da Ramada. Depois, peguei uma merenda lá na Lola e tomei três lapadas.

A feira é o lugar da realização da vida. Nada de bucolismo, romantismo ou sobrevivência do passado. Não, a feira possui uma função social, e por isto ela persiste no tempo, enquanto espaço cultural de determinadas classes sociais confrontando suas estratégias de sobrevivência.

Ali se realiza e se atualiza a cultura da pobreza, embora muitos abominem este conceito. Não que ali seja “o lugar dos pobres”, não; não é por aí a minha análise. Olho para as formas de ser e de fazer das pessoas que vendem, compram, circulam, se encontram, atualizam amizades. Em síntese: dominam uma linguagem, cultivam uma estética e trocam coisas e sentimentos.

Uma faceta das muitas que ocorrem naquele grande mercado, embora destoe da lógica do mercado tal qual ficou cristalizada na história econômica, é que muitas vezes, certos produtos são levados para serem “trocados” por outros produtos. Situações há em que é de somenos a sua venda para auferir lucros.

Falo do caso de vários “negociantes” da Serra do Araripe, produtores de mandioca. A idéia de alguns é de que “trocam” a farinha por açúcar, sal, mistura (bucho, tripa, toucinho), querosene, etc... E tem mais: Quando descompensa o preço dos bens de sobrevivência mínima com relação ao da farinha, eles produzem mais farinha para a próxima feira. Isto porque a farinha é como se fosse uma “moeda de troca”.

Este fenômeno estranho ao mundo capitalista não ocorreria caso fosse uma indústria. Na indústria, se o produto não tem preço, fecha-se o negócio. A indústria é mãe e filha do lucro. A farinha é o “dinheiro” plantado bem ali na roça para comprar o que “eu não produzo”, se o dinheiro der.

Voltando à feira, aqui e acolá curto de montão andar pelas feiras. Ela é vária sob uma mesma denominação. Tem a feira da farinha, a feira da rapadura, a feira dos tecidos, a dos objetos de barro. É só perguntar e todos apontam a direção ao que você procura. Já foi muito maior e mais concentrada.

Ela desaparecerá um dia? Acho que não por dois motivos: primeiro, seria difícil acabar com a economia da informalidade; segundo, sua função social se liga diretamente à cultura do local, à identidade de um povo, às formas de ser e de fazer que particularizam modos de vida que se ritualizam neste velho mundo, apesar da globalização.Em tempo: a globalização não globaliza sentimentos...

Mas, aqui prá nós, é chato procurar Ciçola, Rói Sebo, Arnaldo Creuza ou Luiz de Tia Rosa pra fazer isto ou aquilo, e ouvir:

- Tão na feira!

E para quem gosta, no programa Compositores do Brasil, desta quinta-feira, às 14 horas, na Rádio Educadora do Cariri (www.radioeducadora1020.com.br, a nossa homenagem ao valoroso compositor paraense Billy Blanco, que faleceu no dia 8 passado, no Rio de Janeiro, e deixou uma obra musical das mais dignas e representativas da moderna MPB.

Bom fim de semana.


3 comentários:

  1. É...

    Quando tinha meus oito a doze anos, gostava muito de ir à feira, e ficava admirado de ver tanta gente vendendo tanta coisa. Eu até comprava algumas bugigangas para vender aos moradores lá do Belmonte. Eram canetas compacto e rotary, espelhos redondos com a foto de um jogador de futebol ou uma mulher bonita, carteiras de cédulas e tantas outras coisas. Naquela idade virei negociante e sempre me saia bem.

    Quando passei dos quatorze anos, a gente ia à feira até para tentar arranjar uma namorada, pois ali tínhamos muita chance de, acidentalmente, sem querer e quase querendo, barroar na pretendida, pedir desculpas e tentar entabular um papo. Era sim! rapazinho inventava qualquer coisa para se aproximar da garota dos seus sonhos.

    Hoje restam somente as fotos, que alguém zeloso se preocupou em registrar aqueles momentos para a posteridade.

    Tenho muita saudade daquelas feiras que ocupavam todas as ruas centrais do Crato.

    Ei sentimos sua falta lá no Desafio do Blog 076-2011 Só faltou você. Vai lá!

    Abraços do seu vizinho

    Vicente Almeida

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  2. Prezado Ze Nilton.

    Obrigado pela dedicação. Segue uns versos do Helder França a respeito da feira do Crato:

    Nois passa a sumana inteira
    Prantando mi, macaxeira
    Arrois, batata e argudão
    Limpando as roça da gente
    Nois num respeita só quente
    Nois num perde ocasição.

    Agente na Batateira
    Já sente o cheiro da feira
    Nos caminhão que ali passa
    Lá nois desce um pedacim
    Mode as muié tomar vim
    E agente tomar cachaça.

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  3. Professor José Nilton, belo texto.Já que discreve a feira do Crato, faltou citar, os violeiros, que são ícones da cultura local, reconhecidos nacionalmente.Mas nas feiras sempre rolaram mil e uma coisa.

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