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"Ultrapassa-te a ti mesmo a cada dia, a cada instante. Não por vaidade, mas para corresponderes à obrigação sagrada de contribuir sempre mais e sempre melhor, para a construção do Mundo. Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio. Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo".

Dom Helder Câmara


quinta-feira, 14 de julho de 2011

A DIVINA COMÉDIA - Canto XVII - Por Vicente Almeida

INFERNO

Gerión - Espíritos de famílias da alta nobreza

Gerion com Dante e Virgílio no seu dorso.
Ilustração de Gustave Doré

- Eis a fera com sua cauda aguda, que atravessa os montes e rompe os muros e armas! Eis aquela que em todo o mundo transpira e fede! - começou a me falar o mestre, enquanto acenava para a fera sinalizando que ela viesse à beira da pedra onde estávamos.

E ela subiu com a cabeça e o busto, mas sobre a beira não descansou sua cauda. A sua face era a face de um homem justo, tão benignos mostravam-se seus traços, e de serpente era o resto de seu corpo. As suas garras e o seu tronco eram peludas. Tinha o dorso e peito ornados com pinturas de argolas e laços. Toda a sua cauda no vazio vibrava, torcendo sua forquilha venenosa, armada na ponta como um escorpião.

- Vamos! - chamou o mestre - Vamos até a fera que acolá se assenta!

Descemos pelo lado direito do dique e demos dez passos pela sua beira inferior, evitando as areias quentes.

Quando estávamos ao lado de Gerión, eu percebi, um pouco mais distante, algumas pessoas acocoradas na areia junto à beira do precipício.

- Para que possas ter um conhecimento completo dos tormentos deste círculo, vai tu falar com aquele grupo enquanto eu convenço esta fera a nos transportar. - sugeriu Virgílio.

E eu fui, sozinho, margeando a aresta do precipício, até onde estavam sentadas aquelas almas tristes.

Dos seus olhos escapava-lhes a dor. Com as mãos, defendiam-se como podiam do solo em brasa e do ardente calor. Examinei aqueles rostos, mas nenhum reconheci. Notei que todas tinham uma bolsa pendurada no pescoço, cada uma de uma cor, com um brasão nelas gravado. Uma tinha algo azul com rosto de leão impresso numa bolsa amarela. Outra ostentava uma bolsa vermelha com uma pata branca desenhada. Aquela alma que tinha uma porca azul pintada sobre uma bolsa branca me perguntou:

- O que fazes nesta fossa? Vai embora! E como estás vivo, saibas que o meu vizinho Vitaliano sentará aqui à minha esquerda. Que venha o cavaleiro soberano, que três bodes terá na sua bolsa!

Falou e depois fez caretas terríveis, puxando a língua por cima do nariz. Eu, assustado, voltei para o lugar onde o mestre já me aguardava. Quando cheguei, Virgílio já estava montado sobre a garupa da fera.

- Ora, tenha coragem! - disse, tranqüilo - Monta aqui na minha frente, pois atrás ficarei eu para evitar que sua cauda possa fazer-lhe mal.

Gerion sobrevoando os condenados com Dante e Virgílio no dorso.
Pintura de Giovanni Stradano - Século XVI

Subi então naquele bicho horrendo, tomado de medo e horror. O mestre me segurou firme e então gritou:

- Gerión, move-te afora e desce devagar. Pensa na carga que carregas!

E assim, o monstro deu ré e virou-se na direção do abismo. Onde estava o peito agora estava sua cauda, que esticou como uma enguia, e com suas garras puxou o ar escuro, mergulhando na escuridão. Eu estava aterrorizado. Nunca sentira medo igual. Olhei para baixo e nada vi. Só havia escuridão. Gerión se movia lento, nadando, descendo em espiral. E esse movimento eu só pude perceber por causa da brisa que soprava no meu rosto.

Pouco depois comecei a ouvir os lamentos que já dominavam o ar. Debrucei-me para olhar para baixo e vi o fogo. Assustado, logo me aprumei e segurei firme. Depois de cem voltas Gerión finalmente pousou, nos deixando no fundo, ao pé do grande penhasco. Assim que descemos de sua garupa ele sumiu, esvaindo-se na escuridão.

No Canto XVIII veremos Malebolge - Círculo da fraude (8) Valas dos sedutores, e aduladores

4 comentários:

  1. É...

    Gerión, foi na mitologia clássica, o rei da Espanha. Vivia na Eritréia onde foi morto por Hércules.

    Se assemelhava a um ancião, mas, quando visto com atenção, sua forma real e terrível se tornava evidente.

    Outros poetas normalmente o retratam como uma criatura de três corpos e três cabeças que representavam as ilhas de Majorca, Minorca e Ivica.

    Dante o representa como uma criatura de três naturezas: cabeça de homem, tronco e garras de fera, corpo e cauda de serpente.

    O rosto de pessoa boa e honesta que esconde sua natureza terrível, qualifica Gerión como a personificação da fraude, que veremos nos círculos restantes.

    Italianos usurários: Representam as famílias Gianfigliacci e Ubbriachi, de Florença e Scrovigni, de Pádua, de acordo com os brasões que ostentam em suas bolsas.

    São usurários, apegados aos valores materiais (títulos de nobreza) que valorizam mais que qualquer coisa.

    E aqui, a nossa descida chegou ao meio do caminho. Restam dezessete cantos, narrando pecados ainda maiores do que aqueles que já vimos, razão por que as almas dos pecadores, foram situadas por Dante no mais profundo abismo.

    Vicente Almeida

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  2. E vamos seguindo...
    Cada canto tem a sua beleza. Se chegamos ao meio, não tem volta...é ir em frente!
    Vamos lá!

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  3. É...

    Valdemísia:

    Há tanta coisa para aprendermos, que não podemos perder um segundo na ociosidade. As tarefas mais difíceis, no final são as que nos dão mais prazer.

    Vicente Almeida

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